quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Resenhando - "Meat is Murder" 30 anos

A banda surgiu quase de uma necessidade. Ao sair da escola, um garoto não tinha ideia do que fazer com sua vida, e se mantinha trancado em casa, com seus livros, seus escritos e seus pensamentos. Ao mesmo tempo, o outro garoto que resolvera ser guitarrista precisava de letras para suas músicas. Com as notas ele era bom, apenas as palavras se perdiam para ele. O garoto trancado ganhou fama na cidade pela sua introspecção, e o guitarrista foi atrás dele para saber se ele podia escrever para suas músicas. O ano era 1982 e, resumidamente, eis a história de fundação, do The Smiths.

A banda

Joyce, Morrissey, Rourke e Marr.
A banda foi criada em 1982, em Manchester, Inglaterra. Na época, Steven Morrissey, letrista e cantor, era um rapaz tímido que, assim que terminou a escola, sentiu-se perdido no mundo e, sem saber como seguir com a vida, passava seu tempo trancafiado em seu quarto, lendo e escrevendo, enquanto Johnny Marr, guitarrista, era um artista promissor, precisando de letras para suas melodias. Através de um amigo em comum, Johnny pôde entrar na casa de Morrissey (uma fortaleza quase impenetrável) e lhe pedir para fazer letras e ser o vocalista de uma nova banda. Morrissey concordou, mas com ressalvas: A banda deveria ser o mais simples possível.

A banda se chamou The Smiths, quase como uma resposta à bandas que faziam sucesso porém possuíam nomes complicados, como Spandau Ballet ou Orchestra Manoeuvres in the Dark, por exemplo. Por ser o sobrenome mais comum da Inglaterra (talvez de todos os países anglófonos), a ideia seria de que gente comum também faz música, e era hora dessa gente mostrar seus rostos.

Inicialmente, Morrissey e Marr gravaram fitas demo com um baterista avulso, mas logo recrutaram Mike Joyce para assumir a bateria. Para o baixo, estava Dale Hibbert, que trabalhava em um estúdio de gravação, o que permitia um acesso a um local próprio para a gravação das fitas. Entretanto, Marr não estava satisfeito com a forma de Hibbert de tocar baixo, alegando não combinar com o grupo. Então convidou seu amigo pessoal, Andy Rourke, para assumir o posto de baixista do The Smiths.

Em 1983, a banda lançou seu primeiro single, Hand in Glove, que foi aclamado pela crítica, porém esse efeito não se converteu em números de vendas. Essa foi uma característica que acompanhou a banda durante sua existência.

Primeiro álbum da banda (1984)
Em 1984, foi lançado o primeiro álbum, o homônimo The Smiths, que contou com músicas como Reel Around the Fountain e The Hand that Rocks the Cradle. Ambas geraram polêmica por acharem que incitavam a pedofilia, ideia rejeitada pela banda. Outra faixa que causou discussão foi Suffer Little Children, abordando uma série de assassinatos ocorridos nos anos 60 na Inglaterra. Mesmo com elogios da crítica, o álbum não vendeu bem.





Meat is Murder

Em 12 de fevereiro de  1985, o álbum Meat is Murder foi lançado e apresentava letras mais ácidas e políticas que seu antecessor. Morrissey passou a expor seu ativismo pró-animais, a começar pelo nome do álbum e da faixa-título, inclusive proibindo a banda de ser vista comendo carne. A capa, com uma foto de um soldado da Guerra do Vietnã, possui uma montagem, com o título do álbum escrito em seu capacete. Sobre essa capa, Morrissey declarou que ela significa que "enquanto os homens maltratarem os animais, haverá guerras".


Imagem original do álbum
Em suas letras, o cantor ainda mostrou críticas à monarquia e à educação dada às crianças, baseada em castigos físicos. Meat is Murder foi o único álbum de músicas inéditas a chegar ao nº 1 das paradas inglesas.


Principais faixas


1. The Headmaster Ritual

Morrissey sempre foi um crítico ao tradicionalismo em algumas áreas do cotidiano. Entre elas, a educação das crianças. Sendo sua infância e adolescência passadas nos anos 1960-70, Mozz viveu numa época em que as escolas inglesas comumente disciplinavam seus alunos através de castigos físicos.

O corpo docente era majoritariamente composto de professores idosos, nascidos nas primeiras décadas do século XX, o que dificultava qualquer mudança nos métodos educativos:

"Belligerent ghouls run Manchester schools
Spineless swines, cemented minds"

(Mortos-vivos beligerantes mandam nas escolas de Manchester
Porcos sem caráter, mentes cimentadas)

Seguindo a letra, a música mostra as agressões sofridas durante os "rituais disciplinares", e claro, o desejo de escapar de toda aquela tortura:

"I wanna go home, I don't want to stay
Give up education as a bad mistake
Mid-week on the playing fields
Sir thwacks you on the knees
Knees you in the groin
Elbow in the face
Bruises bigger than dinner plates"

(Eu quero ir pra casa, não quero ficar
Desista da educação como um grande erro
Meio de semana nos campos de treino
O professor golpeia-lhe nos joelhos
Dá uma joelhada na virilha
Cotovelada na cara
Hematomas maiores que pratos de jantar)

Agressões de professores levavam à violência entre os alunos. Os maiores ameaçando os mais vulneráveis, e, conhecendo bem a figura, Mozz não escreveria que bateu, mas que apanhou. Já que a violência era endossada, era mais fácil tentar apenas escapar das ocasiões em que poderia ser agredido usando alguma desculpa esfarrapada:

"Please, excuse me from Gym
I've got this terrible cold coming on
He grabs and devours
And kicks me in the showers"

(Por favor, me dispense da Educação Física
Estou ficando com esse resfriado horrível
Ele me agarra e me devora
E me chuta no chuveiro)

Morrissey provavelmente sofreu no colégio, o que possivelmente trouxe sua reclusão ao seu quarto assim que se formou.

2. That Joke isn't Funny Anymore


A única música do álbum que foi lançada como single, não vendeu bem, e foi bem recebida pela crítica. Johnny Marr a considera uma de suas favoritas. Morrissey disse em entrevista que esta música é uma espécie de resposta aos críticos, que atacavam suas letras por mostrarem o "lado infeliz da vida" e o acusando de ser "falso" quanto a suas tendências deprimidas.

A letra parece mostrar alguém em um carro estacionado, pensando como seria fácil tirar sarro de pessoas introspectivas, porém percebe em si a mesma introspecção, e diz que a sensação de ser zombado por isso é algo que ninguém conseguiria sentir.



"When you laugh about people
Who feel so very lonely
Their only desire is to die
Well, I'm afraid
It doesn't make me smile
I wish I could laugh
But that joke isn't funny anymore
It's too close to home
And it's too near the bone
[...]
More than you'll ever know"

(Quando você ri de pessoas
que se sentem tão solitárias
que seu único desejo é morrer
Bem, eu receio
que isso não me faça sorrir
Quem dera poder rir
Mas essa piada não é mais engraçada
É muito pessoal
e muito familiar
[...]
Mais do que jamais saberá)


Morrissey é lembrado por dizer uma vez que achava bancos de couro de carro "altamente eróticos". Essa afirmação abre um leque para o que pode-se interpretar quando ele canta:

"It was dark as I drove the point home
And on cold leather seats
Well, it suddenly struck me
I just might die
With a smile on my face after all"

(Estava escuro quando eu deixei minhas intenções claras
E nos bancos gelados de couro
De repente percebi
Que eu poderia morrer
Com um sorriso no rosto, afinal de contas)


Talvez quisesse dizer que a morte seria algo tão prazeroso como um ato erótico. E que a satisfação sentida no fim traria-lhe um belo sorriso na hora de morrer.

3. Barbarism Begins at Home

Essa música seguiu a linha de The Headmaster Ritual, criticando as formas de disciplina da época da juventude de Morrissey. Desta vez, porém, a letra enfatiza os castigos dados pelos próprios familiares.
De início, a letra diz que a imaturidade das crianças em crescimento leva à necessidade de vigilância constante dos adultos:

"Unruly boys 
Who will not grow up
must be taken in hand
Unruly girls
Who will not settle down
Must be taken in hand"

(Garotos desobedientes
Que não vão crescer
Devem ser pegos pela mão
Garotas desobedientes
Que não se acomodarão
Devem ser pegas pela mão)


Logo a seguir, a letra destila os castigos físicos dados pelos progenitores, por motivos variados e, muitas vezes, infundados:

"A crack on the head
Is what you get for not asking
And a crack on the head
Is what you get for asking"

(Uma pancada na cabeça
É o que você recebe por não perguntar
E uma pancada na cabeça
É o que você recebe por perguntar)

A música é curiosa pela sua longa parte instrumental, tomando quase metade da faixa. As linhas de baixo eram inovadoras para o grupo, com Rourke abusando de batidas de funk, tornado a música dançante e incomum para os padrões da banda.

O ritmo dançante inclusive gerou uma das cenas mais curiosas e memoráveis do The Smiths: Em um show, ao final da música, Morrissey dançava de sua maneira característica, e Johnny Marr, num momento de euforia e sincronia, abandona a guitarra e vai dançar com seu companheiro de banda.



4. Meat is Murder

Faixa-título e última faixa da lista do álbum, esta música abriu caminhos explícitos para a politização da imagem de Morrissey para o público. Em meio a ruídos distorcidos e sons de animais, a letra é uma crítica ácida ao consumo de carne, enfatizando a morte de animais necessária para a produção do alimento.

Nos primeiros versos, Morrissey compara o sofrimento animal com o humano e chama o abate de assassinato:

"Heifer whines could be human cries
Closer comes the screaming knife
This beautiful creature must die
[...]
A death for no reason
And death for no reason is murder"

(O bezerro geme, poderia ser um choro humano
A faca gritante se aproxima
Esta bela criatura deve morrer
[...]
Uma morte sem motivo
E morte sem motivo é assassinato)

Em seguida, Mozz volta sua metralhadora para o preparo e o ato em si de comer carne:

"And the flesh you so fancifully fry
Is not succulent, tasty or kind
It's death for no reason
And death for no reason is murder
And the calf that you carve with a smile
[...]
And the turkey you festively slice
Is murder".

(E a carne que você tão distraidamente frita
Não é suculenta, gostosa ou algo do tipo
É morte sem sentido
E morte sem sentido é assassinato
E o vitelo que você destroça com um sorriso
[...]
E o  peru que você fatia festivamente
É assassinato)


Opinião

Entre os álbuns do The Smiths, esse foi o que desencadeou o lado mais polêmico de Morrissey, que o acompanha até os dias atuais, com entrevistas atacando aspectos mundanos, como o consumo de carne, a realeza britânica e a disciplina dada pelos pais aos filhos. Também o álbum foi produzido talvez no melhor momento da relação de Morrissey e Johnny Marr, tornando talvez as músicas deste álbum e dos singles lançados nesse ano como as melhores musicalmente, incluindo a tão amada pelos fãs There is a Light that Never goes out, adicionada no álbum seguinte, The Queen is Dead. A grande verdade é que o Meat is Murder mostrou como Morrissey poderia se portar, se lhe dessem a chance de dizer suas opiniões da sua forma predileta: cantando.

E o nº 1 nas paradas britânicas mostrou que o público receberia bem as opiniões contundentes de Morrissey.

Veredicto

Seja mostrando como sofria na mão de outros estudantes, como a introspecção invadia sua vida, como se sentia diante de um amor platônico (em Well I Wonder), ou o que sentia quando você come um sanduíche de presunto e queijo, Morrissey foi impecavelmente inteligente do início ao fim deste álbum, e Johnny Marr escreveu brilhantes melodias, sem jamais esquecer Andy Rourke e uma das melhores linhas de baixo já feitas, de Barbarism Begins at Home.

É quase impossível dizer algo diferente dos Smiths que não seja "genial". Não é a toa que está é uma das bandas lendárias da do rock britânico, ao lado dos Beatles, Rolling Stones, The Who, Queen e The Clash.

Agradecimentos aos amigos Lucas, MaFê que revisam meus textos, e Gerson que é especialista em The Smiths e me ajudou com o conteúdo.

Feedback é bom, eu gosto e me ajuda a escrever melhor ;)

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